sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Senhor Puntila E O Seu Criado Matti no Teatro Aberto



De vez em quando sabe bem. De vez em quando sabe bem parar de sonhar com Londres ou Nova Iorque para descobrir que afinal também existe cultura em Lisboa. De vez em quando.

Devaneios à parte, vem esta reflexão a propósito da peça que está em cena no Teatro Aberto até ao final do mês: falo de O Senhor Puntila E O Seu Criado Matti. Escrita por Bertolt Brecht e encenada por João Lourenço, setenta anos decorridos. A história é simples: o Senhor Puntila é um grande proprietário finlandês e tem uma filha chamada Eva. Quer casá-la com um adido do Ministério, se bem que ela preferisse os braços rudes de Matti, motorista do seu pai. Quando bêbado, Puntila é um pinga-amor, e em geral bom homem: um Dom Quixote, por assim dizer (sempre acompanhado por Matti, seu fiel Sancho Pança). Contudo, sofre com um problema: como ele próprio confessa ao motorista, de vez em quando tem uns ataques de sobriedade, transformando-se num homem autoritário e calculista. Assim, ora conduz loucamente pelas estradas finlandesas à procura de álcool e de noiva, ora ameaça os seus criados com o despedimento. Ora promete a mão de Eva a Matti, ora organiza a festa do noivado da sua filha com o adido. Pelo meio, jogos de sedução e muitos embaraços. E claro, uma festa de noivado explosiva.

O tom da peça, já se percebeu, é de comédia – o próprio Brecht, em anotação, dizia que uma representação naturalista não seria a mais adequada, pelo que os actores se deveriam inspirar na Comedia dell’ Arte italiana. O dramaturgo alemão revela ter também um dom raro para a comédia, elaborando diálogos hilariantes e imprimindo à peça o ritmo certo. Há, claro, uma mensagem política, baseada essencialmente numa denúncia tanto da desigualdade entre patrões e empregados como da censura política (recorde-se que a peça foi escrita em 1940, durante o exílio de Brecht na Finlândia). No entanto, ela raramente se sobrepõe ou parece deslocada em relação ao todo. A encenação é sóbria, recorrendo a constantes mas simples alterações do palco, e a algumas projecções de vídeo. Uma solução que resulta particularmente bem é a incorporação de música ao vivo, normalmente usada como introdução à cena seguinte. As composições ligeiras de Mazgani e a performance ligeiramente alucinada do trio de músicos que as interpreta funcionam como complemento ideal da peça, fundindo-se muito bem com o texto e com o trabalho dos actores. Relativamente a este ponto, é preciso dizer que todo o elenco, sem excepção, está de parabéns. Dos criados às noivas de Puntila, passando pelo juiz ou pelo pastor, todos fazem o seu papel com brio e genuíno prazer. Mas seria injusto não fazer alguns destaques. O primeiro para Cristóvão Campos, hilariante no papel do insuportável e dançante adido. Depois, o notável trabalho de Sofia de Portugal, no papel de Eva: atrevida umas vezes, mimada outras, mas sem deixar de ser capaz de mostrar fragilidade. Sérgio Praia dá a Matti um sotaque beirão e pose de homem rude, sem deixar a personagem cair na caricatura: Matti é um homem simples, mas nunca adopta uma postura servil em relação ao seu patrão. E assim chegamos ao último destaque: a generosa prestação de Miguel Guilherme. Cómico quando bêbado, intimidante quando sóbrio, o seu Puntila é uma criatura em constante mutação. Não raras vezes, perguntamo-nos afinal qual dos dois Puntila estamos a ver, tal é a sua flexibilidade e habilidade para mudar de registo. Não importa, na verdade: é sempre magnífico.

No final, depois de as luzes se acenderem, ouvia-se no público “Já?” ou “Não queria que acabasse, podia cá ficar mais uma hora”. Conclusão: O Senhor Puntila E O Seu Criado Matti é um grande exercício de comédia. É, também, a prova de que há teatro do bom a acontecer neste momento. Por isso, é favor pegar no telefone (o número é o 213880089) e dizer “Estou? Fala do Teatro Aberto? Era para fazer uma reserva”.

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